Geral: Twelve-Step Suite (por Abner Andrade)
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O alcoolismo sempre exerceu um papel importante no cenário musical. De fato, pode-se dizer que a “marvada” é uma das maiores compositoras da história, gerando músicas com as quais o ébrio pode facilmente se identificar. Essa influência é inevitável, tendo em vista que grande parte dos músicos começa a carreira tocando em barzinhos (talvez na esperança de que o efeito do álcool na percepção estética se estenda ao gosto musical dos ouvintes), e o que às vezes começa como pagamento pra deslanchar a carreira acaba se tornando o fantasma do músico. Amy Winehouse declarava abertamente que recusava submeter-se à reabilitação; o resultado é de todos conhecido: a cantora teve uma intoxicação por excesso de álcool e se juntou ao lendário clube dos 27.
Apesar de soar, às vezes, como uma forma de se eternizar no Hall da Fama musical, tenho certeza que esse não é o fim desejado por um músico (quanto material de qualidade ainda não seria criado por Amy?). O desejo de salvar a carreira (e a vida, em última instância) foi o que levou o baterista Mike Portnoy, ex-Dream Theater, a buscar ajuda no AA (Alcoólicos Anônimos) a fim de largar o vício através do programa dos 12 passos. O tratamento serviu de inspiração ao músico, que compartilhou a sua experiência em 5 músicas espalhadas por 5 álbuns consecutivos do Dream Theater. As músicas falam acerca dos 12 passos pelos quais o músico teve que passar enquanto tentava se manter sóbrio, que resultam num total de cerca de 55 minutos. Além de compartilharem a temática, as faixas comunicam-se comunicam-se também em riifs, progressões de acordes, letras, etc. Abaixo segue um comentário acerca de cada uma das músicas:
0. The Mirror (Awake)
The Mirror não faz parte oficialmente da suite, mas é considerada o “prelúdio” da mesma visto que foi composta por Portnoy e trata do mesmo tema. A música contém um riff extremamente pesado (é sabido que o guitarrista John Petrucci usou uma guitarra de 7 cordas neste álbum) que se adequa à profundidade da letra, onde o eu lírico confessa a dificuldade que tem de se olhar no espelho e a necessidade de, enfim, enfrentar o problema (“Let's stare the problem right in the eye”). Representa o fundo do poço do alcoólatra, onde ele se envergonha de si mesmo, não consegue mais obter a confiança daqueles ao seu redor e decide buscar ajuda (“It's time to make my amends, I'll never hurt you again”).
1. The Glass Prison (Six Degrees of Inner Turbulence)
Esta música é um épico de quase 14 minutos que veio a ser a primeira faixa do sexto álbum de estúdio da banda, lançado em 2002. A faixa introduz alguns dos riffs e progressões que serão relembrados no restante da suite. A letra da música segue o padrão dos épicos da banda ao ser divida em partes numeradas (o que se repetirá nas demais músicas da suite), onde o baterista fala dos três primeiros passos do tratamento:
I. Reflection – no primeiro passo o liricista compartilha de como o uso do álcool começou como uma fuga do que ele mesmo chama de “pecados diários”, na tentativa de encontrar um “lugar seguro”. A bebida à princípio era uma “amiga de longa data” que veio a ficar totalmente fora de controle, tornando-se a sua “prisão de vidro”, à qual ele “rasteja” na tentativa de recriar o seu próprio “mundo solitário”.
II. Restoration – no segundo passo, reconhecer sua total incapacidade de fugir desta prisão, o autor suplica a ajuda de um Poder superior para que a sua sanidade seja restaurada. Este diálogo aparece na letra numa estrutura que se repete duas vezes: um verso em que este Poder se dirige ao suplicante, seguido da prece:
Help me - I can't break out this prison all alone
Save me - I'm drowning and I'm hopeless on my own
Heal me - I can't restore my sanity alone
III. Revelation – após uma seção instrumental, o autor conta como depositou a sua confiança na força divina. Numa linguagem metafórica, o autor se vê diante de uma porta fechada a qual ele tenta abrir forçando-a “com toda a sua vontade”, sem sucesso. Ao dar as costas, o mesmo se ajoelha e ora: “Faça-se a Tua vontade”. Ao se virar, ele vê uma luz: a porta está aberta.
2. This Dying Soul (Train of Thought)
A segunda música da suite, assim como a maioria das músicas do sétimo álbum, possui um tom extremamente pesado e obscuro. A mesma segue num ritmo rápido desde o seu início, apresentando um dos riffs mais marcantes da suite. As duas primeiras notas da música são as mesmas do final da faixa The Glass Prison, que abre a suite. A faixa fala dos passos quarto e quinto do tratamento, como segue:
IV. Reflections of Reality (Revisited) – o título da seção é uma referência à faixa The Mirror, assim como outras partes da música (“Hello, mirror/so glad to see you, my friend/it's been a while”, “Now it's time to stare the problem right between the eyes you long lost child”), o que é interessante, pois esse passo trata-se de um acurado inventário moral que o dependente faz de si mesmo. O baterista relembra fatos da infância e adolescência que podem o ter levado ao vício, como o divórcio dos pais quando ele tinha apenas 18 meses de vida (“Born into a broken home... Forced into a life split in two/A mother and a father both pulling you”); a morte da mãe quando ainda era um adolescente, o que o fez ter que morar com o padrasto, e a do avô, que lhe presenteou com a sua primeira bateria no seu décimo-primeiro aniversário (“Then you had to deal with loss and death/Everybody thinking they know best/Coping with this shit at such an age/Can only fill a kid with pain and rage”); e a vida fora de casa (“Living on your own by 21/Not a single care and having fun/Consuming all the life in front of you/Burning out the fuse and smoking the residue”). A soma de todos estes fatores o levaram a “transformar toda a dor em em culpa e ódio”.
V. Release – o diálogo com o Poder superior é retomado neste passo, onde este o encoraja a expor os seus “fantasmas atormentadores” e a não manter segredos, para que assim ele encontre a sua “paz de espírito”. A força divina diz que vai ajudá-lo a “acabar com esta tortura”, contanto que o autor “deixe o ego ir embora” e seja humilde e honesto.
3. The Root of All Evil (Octavarium)
A primeira faixa do majestoso álbum Octavarium é também a terceira música da suite composta por Portnoy, sendo a música mais curta de toda a suite. Sua introdução é uma referência a Welcome to The Machine da banda Pink Floyd, e mais dois passos do tratamento são explorados nesta faixa:
VI. Ready – neste passo o liricista se prontifica a deixar que a força divina remova os “desejos que continuam a queimar por dentro” e lhe pede que dê forças para “enfrentar mais um dia”. O autor ainda expõe alguns defeitos do seu caráter, como o orgulho, a ganância, a raiva, a inveja e a preguiça, que o haviam cegado e dos quais ele já está pronto a se desfazer.
VII. Remove – nesta seção podemos ver algumas referências líricas à faixa anterior, This Dying Soul. Aqui o autor reconhece que a humildade é a sua única esperança, portanto, humildemente roga à força divina que o ajude a se livrar das “obsessões que o assombram”.
4. Repentance (Systematic Chaos)
Esta faixa é a mais sombria da suite, casando com a temática dos passos introduzidos aqui. É a quinta faixa do álbum Systematic Chaos, o nono de estúdio da banda lançado em 2009, sendo notável por ter sido tocada ao vivo apenas uma vez, sendo esta no Progressive Nation 2008 com a participação de Mikael Akerfeldt da banda Opeth nos vocais. Os passos VII e IX são explorados nesta faixa:
VIII. Regret – uma das tarefas mais desafiadoras para o dependente toma lugar neste passo, que é listar todas as pessoas que ele já prejudicou, prontificando-se a reparar os danos causados a elas. Logo no início há uma referência óbvia à faixa This Dying Soul, onde mais uma vez o autor encontra com um amigo de longa data, o espelho. Ao se ver diante da folha de papel, ainda em branco, retratos do passado começam a passar pela sua mente, e uma enorme tristeza toma conta do liricista enquanto a caneta começa a traçar o seu passado mais sombrio. O autor confessa o seu medo diante da infame tarefa de reparação de danos, mas espera que este seja o começo da sua restauração.
IX. Restitution – num momento de inspiração musical, o baterista, ao invés de compor uma letra especificamente para esta seção, convida alguns de seus amigos músicos para ler os seus pedidos de perdão, dentre eles Corey Taylor, Steve Vai, Joe Satriani, dentre outros, enquanto a banda mantém o andamento lento e sombrio da música. Dentre outras indulgências, o autor pede desculpas ao seu avô por não ter lhe visitado no seu leito de morte e por não ter ido ao seu funeral, sendo este um dos maiores arrependimentos da sua vida. Algo interessante de ser notado é como a visão que o liricista tem de toda esta experiência começa a mudar, já podendo enxergar como a sua experiência pessoal pode ser usada para ajudar outros na mesma situação, como pode ser visto ao final deste passo:
We are going to know a new freedom and a new happiness.
We will not regret the past nor wish to shut the door on it.
We will comprehend the word serenity and we will know peace.
No matter how far down the scale we have gone, we will see how our experience can benefit others.
That feeling of uselessness and self-pity will disappear.
We will lose interest in selfish things and gain interest in our fellows.
Self seeking will slip away.
Our whole attitude and outlook upon life will change.
Fear of people and of economic insecurity will leave us.
Esta faixa, sem dúvida, é uma das mais importantes da suite, por lidar com um momento crucial no tratamento do dependente e por ter sido a mais bem elaborada musicalmente.
5. The Shattered Fortress (Black Clouds and Silver Linings)
O grand finale, a música que sintetiza toda a suite, trazendo de volta riffs e versos de faixas anteriores, apareceu no último álbum de estúdio gravado por Portnoy com o Dream Theater antes de sair da banda, sendo quase como um último ciclo a ser completado pelo baterista na sua jornada de mais 25 anos de banda. Os três últimos passos são expostos aqui:
X. Restraint – o autor se vê na “reta final” de sua jornada, já podendo ver no espelho a prisão que o manteve cativo no passado, não mais no presente. Ciente de que precisa manter esses passos na sua vida a partir de agora, a estratégia do liricista ao lidar com a possibilidade de uma recaída e de novamente decepcionar as pessoas listadas no seu inventário é se perguntar: “tenho feito a eles o que eles fariam por mim?”.
XI. Receive – neste passo o autor busca uma aproximação com a força divina a fim de rogar-lhe o conhecimento da Sua vontade e forças para realizá-la. Nesta seção, há uma explícita referência falada à oração de São Francisco, onde o autor busca orientação divina para se livrar do egoísmo e se tornar uma pessoa voltada para o próximo com o intuito de ajudá-lo.
XII. Responsible – no último passo, o liricista se dispõe a ser a pessoa a estender a sua mão quando qualquer pessoa em qualquer lugar pede por ajuda, dando assim continuidade a essa cadeia de ajuda a dependentes do álcool ao redor do mundo.
O resultado do tratamento feito pelo baterista são cerca de 15 anos de sobriedade, uma carreira de sucesso salva, relacionamentos que haviam sido deteriorados pela bebida sendo restaurados e cinco músicas incríveis que formam esta belíssima suite. Abaixo segue vídeo de todas elas em sequência, incluindo o prólogo The Mirror: