Ouça Esse CD: Victim of Love (por Esdras Andrade)
Caros leitores, lá vai mais uma indicação um trabalho de ótima qualidade musical. Trata-se da obra mais recente de um cantor que, apesar de pouco conhecido, tem voz e música do quilate dos maiores mestres da funky music e do soul. Estou falando do estadunidense Charles Bradley. Conheci esse cara lendo uma edição da revista BassPlayer há uns meses. Nascido em 1948 na Flórida, Bradley tem como ídolo assumido e influência maior o eterno ícone do funk americano James Brown. Seu primeiro trabalho compilado foi lançado em 2011, com o disco No Time For Dreaming (quando o cara já tinha 63 anos!), seguido pelo belíssimo Victim Of Love, de 2013.
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Victim Of Love é um disco que, se ouvido despretensiosamente, passa a impressão de ter sido gravado nos anos 70. A mixagem do trabalho de Bradley intencionalmente reproduz aquele som meio “ruído” característico dos anos de Brown. Bradley surpreende ao dispensar a tecnologia musical do 3º milênio pelos pequenos “chiados” dos anos 70 e pelos instrumentos meio “opacos”, ou como se costuma dizer, “sujos”, característicos daquela época.
Aliás, estas opções sonoras não são inéditas. Basta lembrar que Amy Winehouse, musa do soul e do jazz, era também adepta desta filosofia de mixagem. O resultado da opção é um ar musical bem vintage que, em combinação com o encarte do disco, acaba por dar a ele características bem particulares. Particularmente, achei muito arretado (bom demais) e possivelmente faria a mesma escolha.
Quando li a edição da Bass Player na qual conheci Bradley, me lembro de o articulista da indicação do CD ter escrito que escutar Victim Of Love seria uma viagem doce e suave. Nada mais correto. A voz de Bradley é um elemento à parte do trabalho. Seu timbre, bastante rouco e muito parecido com o de Brown, faz lembrar ainda mais o ídolo funky.
Outro detalhe interessante é a interpretação que Bradley dá às canções românticas. Ele empenha tanto as emoções nas músicas que, em dados momentos, se tem a clara impressão de que ele está chorando enquanto canta, tamanha a emotividade que impregna nas canções. Charles Bradley é, definitivamente, um dos melhores cantores que já ouvi. Principalmente por não se preocupar com uma “afinação irrepreensivelmente perfeita”, muito menos em apresentar aos ouvintes uma voz “aveludada”, o que, convenhamos, é muito chato.
Victim Of Love foi gravado com os músicos da banda Menahan Street Band, uma banda composta de jovens e talentosíssimos músicos de soul. O grupo é também responsável pela composição de algumas das músicas do disco.
“Strictly Reserved For You”, primeira faixa do disco, é uma homenagem a James Brown. Com um baixo e uma guitarra marcantes, acompanhados de metais precisos, a canção começa os trabalhos com o pé direito. “Let Love Stand a Chance”, terceira faixa do disco, traz uma balada romântica muito bem construída, na qual Bradley dá mais um show de interpretação. Já “Confusion” tem um elemento, para mim, particularmente interessante: um baixo com distorção. Ao ouvir a música não pude deixar de lembrar de Flea (Red Hot Chili Peppers) em “Around The World” (do disco Californication, 1999).
Por fim, “Victim Of Love”, canção-tema do disco, é uma obra de arte. E ponto. Nela, Bradley canta acompanhado de um violão precisamente perfeito, com leves efeitos de mixagem, de uma tímida percussão e backs vocais irresistivelmente atraentes. Resultado: uma canção que, seguramente, pode servir de exemplo de como a música é simplesmente sobrenatural.
Victim Of Love me ensina algumas lições, meus caros amigos leitores. Primeira delas: há esperança para a música. A prova é que em pleno 2013 (auge da fuleiragem musical) alguém produziu um trabalho musical de qualidade tão alta. Segunda: imediatismo musical não leva a nada. Bradley está no auge de sua carreira aos 66 anos de idade. Terceira lição: é preciso identidade. Bradley contradisse todas as leis da indústria musical moderna, que só pensa em atingir as multidões a qualquer custo, e produziu algo de altíssima qualidade em tempos tão desfavoráveis, por um motivo muito simples: ele é um típico cantor soul/funky dos anos 70. Ele sabe o que é. Ele não se traveste em coisas que não fazem parte da inspiração musical. Ele tem identidade. Nossos tempos são marcados por tantas figuras musicais sem identidade própria, tão superficiais... falta essência. Falta pensar mais na música e menos na platéia.